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Aprender é Descobrir

APRENDER É DESCOBRIR

– revisitando o platonismo –

 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 367, abril/2003 

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.

“Aprender é descobrir aquilo que você já sabe.  Fazer é demonstrar que você o sabe. Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você.” 

 Esta máxima, extraída do livro Ilusões de Richard Bach, sintetiza o inatismo platônico, doutrina filosófica segundo a qual aprendemos devido a um processo natural de descobertas, capaz de desentranhar conhecimentos racionais e idéias verdadeiras que se encontram a priori latentes, guardados em nosso mundo interior.

Platão nasceu em 428-7a.C. na cidade-estado de Atenas, onde viveu a época de seu apogeu político. Foi o mais importante discípulo de Sócrates e, é certo, esteve presente ao julgamento democrático e hipócrita que, em 399 a.C., condenou o grande sábio à morte pela cicuta. Por volta dos 40 anos, Platão fundou sua Academia em Atenas, e a dirigiu até o fim de seus dias, em 348-7 a.C. Um de seus célebres pupilos foi Aristóteles, procedente de Estagira (Trácia), que aos 18 anos ingressou na Academia para beber da fonte platônica durante as últimas duas décadas de vida de seu mestre. A Academia estenderia seu funcionamento por novecentos anos, até hoje a mais longa existência registrada na história das instituições educacionais do Ocidente.

Academia de Atenas, de Rafael Sanzio (1483-1520), Palácio do Vaticano - Roma. Afresco pintado entre 1508-11. Em meio a homens e mulheres, alunos de diversas idades que dicutem astronomia, geometria, literatura, destacam-se ao centro a figuras de Platão e de seu principal pupilo, Aristóteles.

Academia de Atenas, de Rafael Sanzio (1483-1520), Palácio do Vaticano – Roma. Afresco pintado entre 1508-11. Em meio a homens e mulheres, alunos de diversas idades que dicutem astronomia, geometria, literatura, destacam-se ao centro as figuras de Platão e de seu principal pupilo, Aristóteles.

Nascido em berço abastado, numa família tradicional que detinha importantes relacionamentos políticos, Platão, após cumprir o serviço militar em sua juventude, pôde aventurar-se pela Magna Grécia. Além de conhecer Euclides em Megara e estudar a matemática de Teodoro em Cirene, estendeu viagem ao Egito, inspirado pelos passos esotéricos de Pitágoras. Ao retornar a Atenas, já tendo escolhido o caminho da ascese espiritual, dedica-se à poesia, ao teatro, e à leitura dos textos clássicos; aproxima-se dos filósofos e sofistas e, aos 25 anos, conhece Sócrates, de quem se acercaria intensamente e com profunda admiração, a permitir que em seu espírito se processasse uma revolução completa ao longo dos três anos seguintes que antecederam a citada condenação à morte pelo Areópago.

Platão recebeu notável influência dos grandes pensadores de sua época e soube magistralmente sintetizar suas doutrinas num sistema próprio de compreensão do homem e do Universo. De Pitágoras herdou os alicerces órficos de sua filosofia, como a crença na imortalidade da alma, na metempsicose, na existência do outro mundo, a vocação para a pedagogia, o amor pela matemática e pela música, o tom sacerdotal com que expõe na República (Livros VI e VII) sua “alegoria da caverna”, o caráter transcendente de sua original Teoria das Idéias, bem como sua maneira hábil de propor o entrelaçamento do intelecto com a metafísica no intuito de que o homem pudesse perceber a verdade imutável das Formas Puras. 

De Heráclito aceitou a idéia de que tudo é mudança nessa vida, ao menos neste “mundo sensível” em que vivemos, cercados de ilusões e aparências da verdade, onde nada é permanente. De Parmênides e seu principal discípulo, Zenon, assimilou a crença numa realidade perene e atemporal, que Platão situou em seu “mundo inteligível”, distinto deste, somente abarcado pelo intelecto quando este, tocado pelo amor e pela emoção, pudesse de fato desprender-se da falsa realidade que nos cerca para vislumbrar a evidência do Belo, compreendendo que, para além das realidades ilusórias, a alma (o Ser) é una, imutável e permanente.

De Sócrates absorveu o costume de refletir sobre o homem e seus problemas éticos, apreendeu uma conduta impecável, e dele ainda recebeu a maiêutica (arte de fazer parir a verdade por meio de seguidas perguntas), instrumento valioso a sustentar a tese do inatismo. Tal teoria, de que todo conhecimento é reminiscência, assume melhores passagens em dois de seus 29 livros: Fédon e Mênon. Neste último diálogo (82-86), Sócrates interpela um jovem escravo sem estudos e se põe a fazer-lhe questões de crescente complexidade sobre geometria. Por meio de perguntas precisas, Sócrates extrai respostas claras do rapaz, que consegue espontaneamente resolver um cálculo de área, razoavelmente difícil para alguém ignorante. As verdades matemáticas vão surgindo na mente do iletrado escravo conforme Sócrates vai dialogando com ele no sentido de fazê-lo raciocinar corretamente.

Chega-se, tanto no Fédon quanto no Mênon, à conclusão de que o conhecimento da alma provém de existências anteriores. Na República (Livro X), Platão procura fundamentar a teoria da reminiscência por meio da alegoria de Er, um pastor da Panfília que, morto em batalha, após dez dias é encontrado com seu corpo intacto entre centenas de cadáveres putrefeitos. Levado para casa para sofrer os ritos funerários, já estendido sobre a pira de cremação, no décimo-segundo dia post-mortem, para o espanto de todos o falecido acorda, levanta-se, e põe-se a narrar o que viu no além-mundo. Er havia estado entre os juízes que separavam as almas boas das ruins, dando-lhes as sentenças conforme haviam vivido seus dias encarnados.

Er estivera entre almas de sábios, heróis, antepassados e amigos. Os juízes o haviam escolhido para que, em vendo e ouvindo tudo o que ali se passava, pudesse retornar à Terra e contar aos homens o destino que nos reserva o além. Er aprende que as almas renascem indefinidamente para purificar-se de seus erros passados até que não mais precisem reencarnar, quando então passam a residir na eternidade. Compreende ainda que a morte, mero intermezzo entre as existências terrenas, é o período em que as almas podem contemplar o conhecimento verdadeiro e ao menos vislumbrar o mundo perfeito das Idéias, proposto por Platão. Antes de regressarem à nova encarnação, porém, cabe às almas escolher o que desejam experimentar dentre uma infinidade de sortes ou modelos de vida que lhes são apresentados por Láquesis, uma das três deusas do destino. Há vidas de rei, de guerreiro, de artista, de escravo etc, todas à disposição para que sejam tomadas conforme as necessidades compensatórias do futuro aprendizado. As almas devem ainda escolher seu próximo sexo e local de nascimento, e se querem retornar feito mineral, vegetal, animal ou ser humano. Em seu caminho de volta, porém, as almas atravessam vasta planície desértica, sob calor abrasador, que as força beber das águas de Lethé (esquecimento em grego), o rio da despreocupação. Quanto mais bebem mais se esquecem de suas vidas anteriores até que sejam encaminhadas ao local escolhido para o novo nascimento.

Platão se vale desta metáfora (que até hoje marcadamente influencia o kardecismo, o rosacrucionismo e várias outras correntes religiosas) para explicar como o conhecimento pode pré-existir de modo latente em nossas almas, fadados que estamos em nossa existência terrena a viver esquecidos de nosso caráter divino e das verdades puras contempladas.

Bertrand Russell

Entretanto, concordamos com Bertrand Russel (1872-1970) que diz que o argumento platônico de nada presta se aplicado ao conhecimento empírico. O rapaz escravo não saberia “recordar”, por exemplo, nem mesmo com ajuda da indução de Sócrates, quando se deu a construção das pirâmides, muito menos o cerco de Tróia. Contra a teoria da reminiscência, considere-se ainda qualquer descoberta no campo científico, por exemplo a disseminação de doenças por meio de microorganismos atestada pelas experiências de Pasteur. Um completo ignorante dificilmente chegaria a essas conclusões se levado a pensar no problema pelo método de perguntas e respostas.

Somente o conhecimento que se denomina apriorístico – especialmente as intuições lógicas e matemáticas – é que pode existir dentro de nós independentemente de qualquer prévia experiência. De fato, sem contradizer-se, o conhecimento “a priori” é o único que Platão admite como verdadeiro, além das revelações místicas às quais nossas almas estão sempre sujeitas.

Independentemente da crença na reencarnação professada pelo filósofo, podemos indagar: de onde teria vindo o saber do escravo se este não tivesse nascido já dotado dos princípios da racionalidade? O inatismo de Platão aqui se atesta: conhecer é recordar a verdade que já trazemos em nós, inerente ao aparato racional e intuitivo de que somos desde o nascimento bem dotados. Nesse sentido, aprender é mesmo descobrir que já sabemos, exercício este, entretanto, que deve ser praticado com humildade, posto que, conforme roga a máxima socrática a nos servir de dialética: tudo que sabemos, em verdade, é que nada sabemos.

Sócrates marca-nos extraordinariamente por isso: mesmo considerado o mais sábio dos homens, admitia antes de tudo que nada sabia, razão pela qual sempre se manteve aberto ao aprendizado, que advinha de suas conversas com pessoas de todo o gênero, incluindo as mais comuns, mas, sobretudo, do diálogo que estabelecia diariamente consigo mesmo, que o fazia perscrutar-se intuitivamente, levando-o às transformadoras descobertas. O sábio regrou ainda toda sua vida pela divisa do oráculo de Delphos, inscrita por Chílon no Portal do Templo de Apolo: Gnóthi se autón (Conhece-te a ti mesmo); motivo pelo qual sempre valorizou o saber intuitivo e as revelações místicas. Sócrates refere-se em muitas passagens, por exemplo, ao dáimon, espécie de voz ou “demônio” interior que vivia a soprar-lhe o espírito, a dar-lhe conselhos em suas horas difíceis, que ora o estimulava a dizer algo, ora o impedia de fazê-lo. Também é famosa a visão premonitória que certa vez lhe ocorreu quando meditava absorto por horas a fio, como costumava ser visto. Em estado oniróide, Sócrates vê um pássaro magnifíco. De asas abertas, a ave pousa-lhe no peito e canta maviosamente. No dia seguinte, um jovem interessado em conhecê-lo era-lhe apresentado. Seu nome? Platão, que registrou este relato e que de fato soube “cantar” ao mundo as virtudes de seu mestre.

A Morte de Sócrates; óleo sobre tela, Jacques-Louis David, 1787

Aos defensores do inatismo, como vimos, contrapõem-se os empiristas, que afirmam que a verdade e a razão só podem ser adquiridas por meio da experiência. O empirismo entende a razão como uma “folha em branco”, ou uma “tábula rasa”, sobre a qual vão sendo gravadas as experiências de vida que agregam conteúdo a nosso saber. Freud, por exemplo, enxergava dessa forma nosso mundo inconsciente. A esta visão reducionista da psicanálise contrapôs-se Jung, para quem o inconsciente não somente é dinâmico como dotado de autonomia própria, ligado que está à fonte original do saber inconsciente universal, absolutamente capaz, portanto, de nos antecipar verdades que em tempo oportuno tornar-se-ão conscientes, ou de nos levar a passar por experiências significativas, necessárias à nossa evolução pessoal, que Jung chamou de “sincronicidades”. Nesse sentido, poderíamos dizer que a psicologia analítica é de natureza eminentemente platônica no que se refere à sua maneira de compreender o psiquismo, posto que valoriza as percepções intuitivas em detrimento do saber estritamente racional.

Kekulé sonha com o Oroboro e descobre a fórmula estrutural do anel de benzeno!

Cumpre lembrar que a história das descobertas (mesmo as científicas) da humanidade está repleta de exemplos assim. O químico alemão Friedrich Kekulé (1829-1896) adormeceu em frente de sua lareira, sonhou com uma serpente que mordia o próprio rabo e despertou com a exata noção de que o anel de benzeno tinha estrutura espacial hexagonal fechada em si mesma, o que lhe resolveu um problema que o atormentava havia anos. Famosa também é a história do físico Isaac Newton (1642-1727), que teria derivado a equação da gravitação universal num insigth que lhe ocorreu ao observar a queda de maçãs maduras no pomar de Woolsthorpe, onde ele costumava passar suas tardes orando e meditando. Wolfgang A. Mozart (1756-1791) também nos conta com humor que os temas de suas peças eram-lhe antecipados em sonho, sempre mais sublimes do que depois, ele conseguia compor!

Anel de Benzeno

Gênios iluminados à parte, nossa vida cotidiana acha-se igualmente tomada de exemplos de descobertas espontâneas pessoais. Basta conferir nossa história biográfica, ou mesmo perguntar aos amigos sobre isso. Não resta dúvida, sempre que nos deixamos levar pelas vozes do inconsciente, por nosso próprio dáimon interior, descobrimos coisas novas, encontramos verdades escondidas, percebemos virtudes e potenciais a serem trabalhados. Admitindo primeiramente nossa virtual ignorância, e buscando intuitivamente por nossos caminhos, estamos exercitando a nobre arte que une a filosofia ao misticismo em favor do autoconhecimento. Importa, sobretudo, abrir nossos canais às lições dos verdadeiros mestres que habitam esferas transcendentes de nossa realidade interior. Conhecermo-nos a nós mesmos é, pois, nossa humilde obrigação, só assim descobriremos os segredos dos deuses e dos homens. Ao menos é o que nos quer ensinar a grande máxima, que repercute a nos lembrar que ninguém é melhor por saber muito, senão que aprendemos descobrindo que sabemos tanto quanto os outros, a propósito, um quase nada diante dos mistérios realmente imponderáveis!

2 Comments

  1. PAULO JORGE BRITO E ABREU disse:

    …Que a Terapia do charme é, também, a Psicoterapia da carta e do carme: e eis aqui, como em Lacan, a Letra do inconsciente, o excedente e a retórica, a ex-centricidade, assim, da fauna pletórica: são as sombras que vivem na procura, no cóccix, na cura da Análise. Que o engrama e Pentagrama, ele é, aqui, o solerte Psicodrama. E de tudo o que me foi dado ler, e laurear e escrever, Paulo Urban, o cultor do ABC, ele é, no Firmamento, o Amor do «abaissé». Pois aqui o trabalho se liga com o lazer, pois aqui o Terapeuta explana a Teoria. Queremos aduzir: inspirado, em Mnemósine, por Apolo e as Musas, Paulo Urban é Pedagogo, é o lídimo e legítimo inspirador. E aventureiro, e o «Liber», como o Libertador. Pois se o homem, no dizer de Jung, «ainda arrasta, atrás de si, a cauda de um sáurio», à sua frente ele tem o Cósmico, o Tarot, a lesta e a preste Arquetipologia. E eis que a Música é Museu, e eis que Sócrates é rebelde, rebelde como Urban. Pois se és, quiçá, o Cavaleiro do Amor, meu amável tu foste, meu Amigo, aqui estás na minha Biblioteca.

    PAULO JORGE BRITO E ABREU

  2. Marcus Valleri disse:

    Como escreve bem o Paulo Urban. Obrigado por postar este texto. Parabéns pela página.

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