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A Nave Perdida de André Carneiro

 Uma das raridades de minha biblioteca é ‘Diário da Nave Perdida’, Edart, 1963, livro de contos assinado por mestre André Carneiro (1922-2014), personalidade fantástica por si só, maior nome brasileiro no gênero da ficção científica. O exemplar que tenho em mão foi-me dado pelo próprio autor e traz uma encadernação em couro sobre a capa original, com fotocolagens feitas por André. Com ele privei de intensa amizade desde o primeiro instante em que nos cruzamos, era o ano de 1986, eu terceiranista de medicina, ele já poeta e artista plástico consagrado, nome incluído entre os modernistas de 45.

Fomos apresentados um ao outro por intermédio do jornalista Pablo Vilarrubia Mauso que, havendo àquela época me entrevistado a respeito de meu interesse científico pela parapsicologia, fez questão de que eu conhecesse André, também especialista nesta área, a propósito um dos pioneiros do Brasil a explorá-la a sério, sem a corromper com nenhum tipo de crença religiosa. André acompanhara, por exemplo, toda a evolução das pesquisas em parapsicologia delineadas por Joseph Banks Rhine e seus colaboradores, desde quando ela assumira status de ciência na Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte (E.U.A.), num laboratório fundado em 1935. O tema lhe interessava por pertinentes razões, posto ser a parapsicologia tanto estofo quanto pano de fundo a conferir verossimilhança científica aos seus incríveis contos repletos de situações as mais complexas, com personagens dotados de uma psicologia sutil e arguta, protagonistas de desfechos literários sempre imprevisíveis.

Capa Original da Publicação da EDART

André me tinha como a um filho, assim me confessou algumas vezes, e eu até hoje o guardo como um segundo pai, como um guru pessoal da Nova Era também. Ensinou-me a hipnose clínica, lia meus textos, transformava-os com suas sugestões, dava-me conselhos os mais surpreendentes acerca das coisas da vida e introduziu-me ainda no universo dos psicodélicos, através dos quais pude por incontáveis vezes em sua companhia ser levado a bordo dessas naves que propriamente são seus contos, com as quais acessei outras galáxias e inteligências muito além de minha ordinária consciência.

Diário da Nave Perdida conta a história de dois astronautas que se descobrem encerrados numa espaçonave, nos confins da galáxia, perdidos que estão devido a uma avaria, vivendo e sofrendo pela remota esperança de um dia regressarem à Terra. Narrado em primeira pessoa, estilo forte, com neologismos à Guimarães Rosa das estrelas, sabor erótico e caráter existencialista, André Carneiro exercita alguns questionamentos antropo-sociológicos sem resposta no diminuto espaço de uma astronave que desde a primeira linha se sabe perdida no infinito mar de estrelas e planetas que há lá fora. ‘Diário da Nave Perdida’ faz-se assim parábola da vida ela própria, a transcorrer seu cotidiano insólito, passo a passo anotado pela pena de um astronauta atônito, condenado ao exílio cósmico, do qual André se vale a desvelar em todas as nuances esta nossa frágil condição humana. O cenário assim se abre: ‘10 de janeiro de 2.284 ~ Somente eu e a Srta. Liz sobrevivemos ao snet-choque. Dr. Ux, o centralista Z-12 e o Ciberneta-mental pereceram. Sendo apenas Coordenador de Reflexos, não pude estabelecer um diagnóstico exato. A nave atingiu o dobro da velocidade, talvez por defeito gravitacional’. E daí à última linha toda uma viagem pelo Universo (da alma humana) se faz periclitantemente erótica e existencial.

Já li este seu conto diversas vezes, e quanto mais o releio mais descubro coisas novas. Numa destas empreitadas, inspirado pelo universo fantástico criado pelo mestre, compus um soneto em decassílabos heroicos, homônimo de seu conto. Dediquei-o, por óbvio, a seu autor. Quando lho entreguei em mão, emocionado, André me convidou a almoçar com ele num restaurante do Alto da Lapa, bairro paulistano em que morava. Mais uma tarde inteira de enorme intenso aprendizado.

DIÁRIO DA NAVE PERDIDA

Dois astronautas gravam nos diários
em hologramas-táquions XV-6:
“-Ano 3333-;
Vão crono-estelar : véu de hebdomadários”.

Ele é perito em cálculos binários
siderais; ela fala o cosmolês;
um casal astronáutico em xadrez;
ele é rei dos planetas ordinários;

ela, dama das naves, cai rendida
ao báculo do esposo astroalmonauta:
sexo faz falta no Universo inteiro!

Derramam no palor da nau perdida
seus líquidos orgânicos; são pauta
das histórias do mestre André Carneiro!

Paulo Urban
Datestelar V.V.MMII
22h22min

Contracapa da encadernação com fotocolagem feita pelo autor

 

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Salto Mortal

One Comment

  1. Rita Celentano disse:

    173

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